Confira o artigo dos consultores Marcio de Oliveira Junior e Paulo Springer de Freitas, da Charles River Associates, e que assessoram a ABTRA no tema, publicado na Agência iNFRA em 25/07/2022.
A ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) está conduzindo o processo de licitação da área conhecida como Cais do Saboó, tecnicamente STS10, que poderá aumentar em 40% a capacidade de movimentação de contêineres do Porto de Santos até 2030. Desde que o procedimento preparatório para a licitação foi anunciado, têm surgido diversos questionamentos sobre o melhor desenho para o leilão de arrendamento, com vistas a garantir maior competição no ambiente pós-outorga. Para tanto, avalia-se a conveniência de se excluir potenciais participantes do processo licitatório.
Mais especificamente, o cerne do debate refere-se à possibilidade de se ampliar a participação de armadores no Porto de Santos. Atualmente, há três grandes terminais de contêineres operando em Santos: BTP, Santos Brasil e DPW. Desses três terminais, a BTP é a única controlada por armadores. Mais precisamente, a BTP é controlada pela joint venture formada pela APM Terminals e pela TIL, que, por sua vez, pertencem aos grupos de armadores Maersk e MSC, respectivamente. A preocupação é o impacto concorrencial do arrendamento de STS10 ser concedido a qualquer uma dessas empresas, consorciadas ou isoladamente, o que ampliaria a concentração e deterioraria de vez a competição entre os terminais de contêineres que operam no Porto de Santos. Desse modo, as regras da licitação só deveriam ser decididas após uma análise pormenorizada, com base em evidências empíricas, dos impactos concorrenciais da maior participação dos armadores. Busca-se, dessa forma, evitar que o processo licitatório de STS10 prejudique a competição no mercado de movimentação de contêineres em Santos.
É importante entender que a preocupação com o ambiente concorrencial pós-outorga é consensual. Nesse sentido, destacam-se dois estudos produzidos por órgãos do Governo Federal. O primeiro, um estudo de mercado elaborado pela EPL (Empresa de Planejamento e Logística), ANTAQ e Ministério da Infraestrutura1 (‘Estudo EPL’), e o segundo, o Parecer SEI Nº 6237/2022/ME do Ministério da Economia2 (‘Parecer ME’). Destaca-se também a análise feita na Nota Técnica nº 10/20223, produzida pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que conclui pela capacidade de fechamento de mercado caso STS10 seja adquirida por qualquer das empresas do arranjo entre a BTP, a Maersk e a MSC, individual ou coletivamente.
O Estudo EPL mostrou-se particularmente preocupado com a possibilidade de STS10 vir a ser adquirida pela BTP ou por algum de seus controladores, Maersk/APMT ou MSC/TIL. Utilizando premissas e interpretações, a nosso ver equivocadas4, concluiu que, para garantir maior competição no leilão, deveria ser proibida a participação consorciada dessas empresas, mas, pelo menos no caso da Maersk/AMPT e MSC/TIL, não foram sugeridas restrições às participações individuais. Discordamos dessa proposição pelas razões que exporemos na sequência.
Outras análises, como, por exemplo, uma publicada no Jota5, chamam atenção para os benefícios da verticalização em termos de ganhos de eficiência, sinergias etc. Mostram também haver uma espécie de tendência mundial de verticalização, citando exemplos de recentes consolidações em Roterdã, Hamburgo e Pireaus.
Devemos registrar que não somos contra movimentos de verticalização a priori. O que defendemos é a análise além da narrativa. É necessário analisar empiricamente os casos concretos de verticalização para avaliar se os seus benefícios previstos em teoria se aplicam ou não. Ainda, mesmo que, no caso concreto, haja benefícios decorrentes da verticalização, é preciso avaliar se ela gera prejuízos à concorrência para, em seguida, fazer uma análise de custo-benefício e, assim, verificar se as perdas superam os ganhos. Em outras palavras, políticas públicas não devem ter como base narrativas, análises teóricas e exemplos internacionais descolados da realidade brasileira.
Por exemplo, não se pode comparar os impactos concorrenciais de uma maior concentração no Porto de Santos, onde cerca de ¾ da carga são destinados à própria hinterlândia, que constitui em uma espécie de mercado cativo, com os impactos em Roderdã ou Hamburgo, que são portos hub, onde a maior parte da carga é destinada a outros portos, e não a seu mercado cativo. De forma similar, Pireaus foi adquirido pela Cosco também para ser transformado em um hub para distribuição de produtos chineses no Mediterrâneo. Na Europa, a competição entre portos é, portanto, acirrada e, além disso, o transporte marítimo de contêineres é menos concentrado do que no Brasil.
Em contraste, e conforme ampla jurisprudência do Cade, a competição existente em Santos é intraporto, ou seja, entre os terminais de contêineres que ali operam. Dessa forma, uma maior concentração em Santos certamente resultará em aumento de custos para seus usuários, com destaque para a indústria paulista, pois 90% de seu parque se situa a menos de 200 km do Porto de Santos.
Tampouco é possível aceitar a narrativa de potenciais ganhos de eficiência decorrentes da verticalização dos armadores sem uma análise empírica mais profunda. De acordo com o Painel Estatístico Aquaviário da ANTAQ6, a prancha média operacional7 da BTP em 2021 foi de 60, inferior à média do Porto, de 64. Similarmente, o tempo médio para atracação de um navio foi de 17,9 horas para a BTP, ante uma média de 13,5 horas para o Porto. Adicionalmente, dados dos balanços das empresas mostram que o faturamento por contêiner é maior na BTP do que em seus concorrentes. Dessa forma – e o passado é importante para prever acontecimentos futuros -, não há por que esperar ganhos de eficiência ou preços mais baixos com eventual aprofundamento da verticalização em Santos que ocorrerá caso os grupos Maersk/MSC/BTP arrendem STS10.
Contudo, a consequência mais grave que se pode antever com eventual outorga de STS10 para a BTP ou a seus controladores, em conjunto ou isoladamente, é o fechamento de mercado. Elaboramos parecer8 mostrando que Maersk e MSC praticam a conduta de autopreferência. A despeito da menor eficiência e dos valores mais elevados cobrados pela BTP, esses armadores dão preferência para o terminal verticalizado para atracar seus navios. Para as rotas de longo curso, que são as que trazem maior receita, a probabilidade de um navio da Maersk ou MSC atracar na BTP é 4,4 vezes maior do que a probabilidade de este mesmo navio atracar em um terminal concorrente. E, se hoje há navios desses armadores atracando nos demais terminais, isso se deve principalmente ao fato de a BTP vir operando acima de seu limite de capacidade.
A conduta de autopreferência é problemática porque Maersk e MSC são responsáveis por, pelo menos, de 50% a 60% da movimentação no Porto de Santos. A esse já elevado percentual, acrescente-se a chamada carga ‘arrastada’. Explicamos: é comum os armadores fazerem os chamados VSAs (Vessel Sharing Agreements), em que um navio de determinada bandeira atende a diferentes armadores. Nos VSAs, é comum a chamada cláusula de terminal próprio, que diz que, quando um dos participantes do acordo possui terminal próprio no porto, os navios com VSA devem atracar nesse terminal.
Nas simulações que realizamos, a conduta de autopreferência combinada com a eventual outorga de STS10 à BTP ou a qualquer uma de suas controladoras faria com que a demanda residual para os terminais concorrentes caísse de tal forma que um deles operaria no limite da escala mínima viável (‘EMV’) e teria capacidade ociosa superior a 50% pelo menos até 2035. Em uma atividade em que os custos fixos e afundados são importantes, o excesso de capacidade ociosa implica custos médios mais elevados e, portanto, menor capacidade de competir.
Em um cenário em que se considera também o arrasto de carga para o terminal verticalizado por conta dos VSAs, o prejuízo para a concorrência será ainda mais intenso. A partir de 2026, quando se espera que o terminal em STS10 comece a operar, a demanda por um dos terminais concorrentes da BTP cairia muito abaixo da EMV e essa situação perduraria por algo em torno de sete anos. Mesmo quando a demanda voltar a se situar acima da escala mínima viável, esse terminal continuará a operar com capacidade ociosa acima de 50% por, no mínimo, até 2036.
Observe-se que esses resultados decorrem de uma estimativa que subestimou a participação máxima da BTP na movimentação de contêineres em Santos. Com base em dados públicos, estimamos essa participação em 76%. A Nota Técnica nº 10/2022 do Cade, que analisou o mercado de movimentação de contêineres em Santos tendo acesso a dados confidenciais das diversas partes envolvidas, concluiu que, quando se considera a carga arrastada em decorrência dos acordos com armadores, a participação da BTP ampliada com a área de STS10 deverá se situar entre, pelo menos, 80% e 90% do mercado. A capacidade de fechamento de mercado por parte da BTP estimada pelo Cade é, portanto, ainda maior do que a estimativa que apresentamos.
Conduzimos outro exercício empírico em que antevemos o cenário de longo prazo, ao final da outorga de STS10, em 20609. Nesse exercício, buscamos identificar a escala mínima viável de longo prazo e como seria a estrutura de mercado de terminais de movimentação de contêineres em Santos, caso a BTP ou alguma de suas controladoras vença a outorga de STS10. Os resultados também indicam prejuízo para a concorrência. Mais especificamente, o estudo conclui que, mantida a conduta de autopreferência por parte da Maersk ou MSC, e dada a EMV estimada, a demanda residual será insuficiente para viabilizar três terminais operando simultaneamente em Santos. Assim, com a outorga de STS para Maersk, MSC e/ou BTP, um dos dois outros terminais concorrentes sairá do mercado e a movimentação de contêineres em Santos ficará restrita a Maersk/MSC/BTP e um terminal concorrente. Ou seja, o grau de concentração aumentará, com prejuízos para a concorrência.
Em síntese, quando vamos além das narrativas e analisamos empiricamente os dados, observamos uma conduta de autopreferência por parte da Maersk e MSC em relação à BTP. A outorga de STS10 a qualquer um desses três participantes implicará deterioração no ambiente concorrencial do mercado de movimentação de contêineres no Porto de Santos, com consequente danos para seus usuários, em especial, para os usuários na cadeia a jusante, quais sejam, os exportadores e os importadores que se utilizam do Porto para o exercício de suas atividades econômicas.
Entendemos, portanto, que se deve buscar o maior grau de competição tanto durante quanto após a licitação. Esses objetivos, contudo, são conflitantes no caso do arrendamento de STS10. O aprofundamento da concentração de empresas ligadas aos armadores no Porto de Santos levará a uma redução da concorrência, comprometendo o objetivo maior de manutenção de um ambiente concorrencialmente saudável. A consequência da exclusão de algum interessado em adquirir STS10 poderá ser uma menor arrecadação do direito de outorga. Entretanto, se a exclusão desse interessado for necessária para assegurar um ambiente mais competitivo após o arrendamento de STS10, ela deve ser feita, conforme propõe o Ministério da Economia no Parecer ME. Há uma justificativa plausível para isso: a maximização do valor da outorga não é o objetivo último do arrendamento de STS10. Seu objetivo é gerar a maior concorrência possível entre os terminais após a outorga, pois uma menor competição entre os terminais prejudicará os usuários do Porto do Santos, em especial exportadores e importadores situados na hinterlândia do Porto.
Dessa forma, considerando o objetivo de aumentar, ou pelo menos preservar a concorrência, a expansão da capacidade do Porto de Santos por meio do arrendamento de STS10 para um membro do arranjo verticalizado Maersk/MSC/BTP é uma péssima ideia.
1 Disponível em: . Acesso em 14 de julho de 2022.
2 Disponível em: . Acesso em 14 de julho de 2022.
3 Nota Técnica nº 10/2022/CGAA3/SGA1/SG/CADE, disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddbtiSElrg_jFEUpyESh7N5J5pT50JG7e5nwlomxBrdByAhiBz622W1mlNZfKbx0XYdcC6hI0LHR_Pzq7ClMtuKM> . Acesso em 14 de julho de 2022.
4 Elaboramos uma nota técnica mostrando por que importantes conclusões a que chegou o Estudo EPL são equivocadas. Não cabe aqui detalhar nossas críticas, mas, para citar alguns problemas, o Estudo EPL supõe um esgotamento de capacidade do Porto de Santos já em 2023, em contraste com o PDZ (Plano de Desenvolvimento e Zoneamento) do próprio porto, que supõe esgotamento da capacidade somente na década de 2030, e analisa a participação de mercado com base na capacity share dos participantes, ignorando que o terminal verticalizado tenderá a operar com 100% de sua capacidade. Por conta desses dados incorretos sobre demanda e oferta, o Estudo EPL conclui que eventual outorga de STS10 para a BTP ou seus controladores poderá fechar o mercado durante cinco anos. Além de esse prazo estar subestimado (utilizando os dados corretos, sobe para, no mínimo, nove anos), o prazo de cinco anos já é considerado suficientemente elevado pelo Cade para suscitar preocupações concorrenciais. Basta imaginar a necessidade de funding que um terminal necessitaria para operar cinco anos com baixa demanda. Nossa análise completa está disponível em: Acesso em 14 de julho de 2022.
5 Vide, por exemplo, o artigo de autoria de Adalberto Vasconcelos intitulado ‘Exemplos mundiais são inspiração para licitação do STS10 no Porto de Santos’, disponível em: . Acesso em 14 de julho de 2022.
6 Disponível em: . Acesso em 14 de julho de 2022.
7 Prancha média operacional é o número de movimentações por hora.
8 Versão pública disponível em: . Acesso em 14 de julho de 2022.
9 A versão pública desta simulação está disponível em: . Acesso em 14 de julho de 2022.
Fonte: Agência iNFRA – https://www.agenciainfra.com/blog/infradebate-alem-das-narrativas-analise-dos-impactos-concorrenciais-do-arrendamento-de-sts10-no-porto-de-santos/
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